Le Monde Bizarre – O Circo dos Horrores

02 novembro 2019
Quando um autor de terror gore ou splatter decide mesclar esse gênero literário com outros temas sérios como a pedofilia, ele começa a pisar em cascas de ovos. Se ele resolve ir mais além e acrescentar na receita do bolo outros ingredientes, entre os quais elementos religiosos – igrejas, padres, pastores e mais isso ou aquilo – ele começa a pisar em casacas de ovos com coturnos. De cada dez escritores que tentam essa proeza, 9,5 se dão mal, por isso, o melhor é não arriscar, e ficar apenas nas vísceras expostas, mutilações, músculos dilacerados, ossos quebrados, canibalismo, além de sangue, muito sangue.
Cara, escrever gore ou trash com classe é extremamente difícil e são poucos que os que conseguem fazer isso sem extrapolar o bom senso, entre os quais destaco César Bravo que tem o dom de fazer um gore pesadíssimo, mas deliciosamente palatável. Tanto é que parou de gastar dinheiro com as suas publicações de ebooks independentes e foi parar na editora Darkside.
Portanto, se você optou em seguir esse gênero, fique apenas com ele e evite as ‘misturebas’ com temas complicated e polêmicos.
Pois é galera, o erro de alguns poucos contos de “Le Monde Bizarre – O Circo dos Horrores” foi querer misturar gore com os tais temas complicated, entonce a coisa azedou. Uma pena, porque esses contos tinham plots incríveis, além de uma narrativa interessante dos autores, mas...
Acredito que a pedofilia, envolvendo dois ou mais personagens, num romance literário não precisa ser descrita em suas sutilezas. O beijo ou o contato físico da criança com o pedófilo pode ser substituído por algo mais discreto. Para que descrever a violação se basta o autor citar que o menor ao sair do quarto de um personagem pedófilo, estava transtornado ou diferente; ou então, simplesmente de que esse menor foi abusado e, ponto final. O escritor Lucas Lourenço faz com perfeição essa diluição da pedofilia em seu conto “O Menino de Ferro”.
Quanto aos elementos religiosos, sobrou para os católicos num conto onde “jogaram” no enredo, um padre que saía com uma menina de 16 anos, filha de uma beata que, por sua vez, também não largava da batina do religioso. Ah! Se você leu o livro, também deve ter prestado atenção no duplo sentido da lança que espetou o pároco. Cara, o problema é que o coitado do padre não passava de um simples figurante que estava acompanhando o espetáculo, usado apenas como um breve recurso humorístico para deixar aquele pequeno trecho do enredo mais leve. Portanto, perfeitamente dispensável.
Por isso “Le Monde Bizarre – O Circo dos Horrores” é ruim? De maneira alguma. Perceberam que eu disse escrevi acima, que se trata de um livro de contos? Entonce... como é comum em obras similares, temos histórias boas e outras nem tanto. A maioria dos 14 contos segue a vertente gore e todos eles giram em torno de um circo, cujo fundador chamado Monsieur Serge Tissot, mantém como atrações, os seres mais bizarros já vistos na terra. De homens de duas cabeças até criaturas inomináveis e quase indescritíveis. Nas cidades por onde passa, a companhia de entretenimento espalha o medo e pavor entre os seus habitantes, com Tissot e suas criaturas cometendo vários atos violentos e covardes.
Os dois contos que mais me agradaram foram “O trailer” do escritor gaúcho A.Z Cordenonsi e “Faça o seu pedido” da paulista G. Araújo. Cara, achei os dois enredos fantásticos. O primeiro, juro que me tirou o sono, já que o li antes de dormir. O final da história, quando você descobre algo... Putz... Que cagaço. Tive um calafrio na espinha. Por sua vez, o conto de G. Araújo envolve e aguça a curiosidade do leitor que fica impaciente para saber o destino de uma garota que faz um pacto incomum com o dono do circo e que pode gerar sérias consequências em sua vida. Adorei. Os dois contos fogem, totalmente, do estilo gore.
Gostaria de elogiar também a iniciativa da editora minera Estronho que optou por escolher 14 jovens autores brasileiros, ainda desconhecidos, na época – o livro foi lançado em 2012 – para escrever os contos da antologia, ao invés de passar a bola para escritores com um certo prestígio. É isso aí, precisamos descobrir novos talentos no terror tupiniquim.
Segue abaixo uma breve descrição dos contos que fazem parte da obra.
01 – À cidade de Metrópia (Kássia Neves Monteiro)
Conto narrado em primeira pessoa onde Callabare, um ex-integrante da trupe do Le Monde Bizarre, escreve uma carta alertando os moradores e autoridades da fictícia cidade de Metrópia quanto aos perigos do circo de Monsieur Tissot que está chegando. Achei o conto importante porque explica a origem do Le Monde Bizarre e como o seu fundador se transformou em uma pessoa má, cruel e ardilosa.  A história de Kássia Monteiro serve de introdução ao universo gore da obra com cenas fortes de canibalismo.
02 – Desfile (Duda Falcão)
Gostei muito do estilo descritivo de Duda Falcão. Eles faz isso sem cansar o leitor, pelo contrário, você se sente compelido a reler as descrições por elas serem muito interessantes e atrativas. No conto, o autor descreve a chegada do Circo dos Horrores em uma pequena cidade do interior. O desfile, que passa pelas ruas da cidade, desperta a curiosidade de muitos espectadores, e a repulsa de outros. No dia do espetáculo, quase todos os moradores comparecem para ver as atrações prometidas e então vem o final surpreendente.
Duda descreve as atrações do circo, durante o desfile, de uma maneira muito peculiar. Gostei bastante!
03 – Freak (Alexandre Heredia)
Um menino muito feio (menos para a sua mãe) descobre uma maneira de ficar bonito. Aliás, uma maneira nada convencional e à custa da vida de outras pessoas. O conto é narrado por um pregoeiro do circo que fica fazendo propaganda das atrações bizarras do evento, incluindo o menino feio. Não gostei muito. Achei o enredo surreal demais e muiiiiito mais do além da imaginação. Um surreal que beira o abstrato.
04 – Sinfonia dos mortos (Pedro de Almada)
“Sinfonia dos Mortos” pode ser considerado o debut no meio literário do jovem escritor de Goiânia, Pedro de Almada. E por ser o seu primeiro conto, acredito que Almada se saiu bem. Gostei da história do menino de  12 anos que após perder os seus pais num acidente de trânsito, no qual somente ele sobreviveu, passou a viver nas ruas. Certo dia ele ouve uma música estranha que vem de uma das tendas do Le Monde Bizarre. Quando vai investigar acaba descobrindo algo chocante relacionado à ele.
Só achei um pouco forçada a entrada de Tissot e de seu circo no enredo. Talvez, se o conto não fosse obrigado a fazer parte do universo do “Le Monde Bizarre”, a sua conclusão poderia ser ainda mais impactante. A história me lembrou muito os trabalhos do cineasta indiano M. Night Shyamalan. Pena que teve de se enquadrar num roteiro já pré-determinado, a exemplo dos outros contos, tendo o circo como “personagem” principal.
05 – Jackie (Celly Borges)
Se você gosta de histórias do tipo ‘Chucky – O Brinquedo Assassino’, ‘A Boneca Assassina’, ‘Bonecos da Morte’ e por aí afora, seguramente irá se simpatizar com “Jackie” da escritora e blogueira Celly Borges.
Jackie é uma boneca assassina do famoso Circo dos Horrores que um dia coloca em sua cabeça que precisa encontrar um coração para ganhar vida. Uai; então ela sai à procura de um, de preferência, bem fresquinho. Quando encontra, Mr, Tissot surge com uma revelação que surpreende a bonequinha maligna.
Conto curto com apenas três páginas e que segue o batidão das histórias que tem em seus contextos, esses malfadados brinquedos que gostam de sair por aí esfaqueando os outros. Achei razoável.
06 – Medicina transformadora: um contrato poderoso (Valentina Silva Ferreira)
Prepare o coração porque o trucão é violento: estupro coletivo, mutilações e violência sem limites. Apesar da autora não revelar a idade da personagem Marita que sofre horrores - inclusive nas mãos de Monsieur Tissot que bolina a menina de uma maneira cruel – algumas descrições dão a entender que se trata de uma criança; coisa do tipo: ‘cabelo ondulado cor de chocolate e bracinhos rechonchudos’. Por isso, não curti muito a história.
Cara, a garota sofre demais e fica por isso mesmo. O conto não tem nenhuma redenção por parte da pobre coitada que aguenta todos os abusos, apenas chorando e implorando. Achei muito tétrico, sem contar que supostamente, a vítima é uma garota menor de idade.
Marita é uma menina contratada pelo dono do Le Monde Bizarre que passa a recusar as suas investidas amorosas e bolinagens. Com o orgulho ferido, Monsiuer Tissot encontra um jeitinho sádico de se vingar e transformar Marita numa das atrações principais de sua companhia.
07 -  O garoto de ferro (Lucas Lourenço)
O texto de Lucas Lourenço rompe o paradigma principal proposto pela coletânea de contos organizada por M.D. Amado, editor da Estronho, pois mostra um Tissot benevolente, pronto a ajudar o próximo. 
A história se passa na Polônia, onde o circo de Monsieur Serge Tissot faz uma temporada. Num vilarejo, o pequeno Smutny sofre todos os tipos de abusos e violência por parte de seu tio. A criança é obrigada a morar com o tio brutamontes e impiedoso após a morte de seus pais. Por isso se sujeita a todos os tipos de humilhações, até mesmo ao abuso sexual. Vale lembrar que o autor explora esse tema de uma maneira direta e ao mesmo tempo sutil. Ponto positivo para Lucas Lourenço.
Um dia, Smutny resolve dar uma escapada de casa, escondido de seu tio, para ver o circo de Tissot que acabou de chegar numa cidade próxima. Após conhecer todos os artistas, ele volta feliz pra casa, mas é flagrado pelo tio. Entonce... sofre todas as consequências de sua escapada.
Quando Tissot, descobre o que aconteceu, resolve vingar o garoto de todas as maldades e abusos que sofreu. Azar do tio brutamontes.
08 – O maior espetáculo da terra dos mortos (Rochett Tavares)
Cara, o negócio é trash!! Pesadaço, mesmo; tanto é verdade, que nesse conto, o gore virou peixe pequeno. Empaquei na parte em que uma criatura demoníaca – mais feia e estranha do que a morte nos seus piores dias – era alimentada com um feto semiapodrecido. PQP! Empaquei, de fato; igualzinho aqueles jumentos teimosos que param e não saem do lugar. Tive que tomar um fôlego para prosseguir com a leitura. Na minha opinião, aquela coisa asquerosa, acho que uma mulher serpente, jantando um feto semiapodrecido foi de muito mal gosto e tal trecho poderia ter sido dispensado. O trash ou gore quando extrapola os limites deixa de agradar o leitor para, então, enojá-lo.
Neste conto de Tavares, um narrador descreve uma apresentação do Le Monde Bizarre. A narrativa faz com que o leitor imagine ser um dos espectadores debaixo das lonas do misterioso circo acompanhandocada uma de suas atrações bizarras. Gostei demais dessa primeira parte, excetuando, é claro, a apresentação da peste da mulher serpente, que como já disse acima, achei desnecessário. O autor poderia até deixar esse monstrengo na história, mas sem o seu estranho alimento.
Na segunda parte, achei que o enredo deu uma descambada muito afoita para o sobrenatural tirando o brilho daquela narrativa fantástica.
09 – Sake em Aokigahara (Iam Godoy)
Achei mediano. Aokigahara, realmente existe. O lugar é uma floresta de 38 km2 situada na base noroeste do monte Fuji, no Japão. No conto de Godoy, Aokigahara traz consigo a fama de maldita e assombrada. Com mais de cem suicídios registrados por ano pela polícia local, a floresta passou a ser evitada pelas pessoas. O enredo conta a aventura de um homem que tentou encarar o lugar amaldiçoado com o objetivo de desvendar os seus segredos. Será que ele se deu bem ou mal? Só lendo o conto prá saber.
10 – Pesadelo interminável (João Manuel da Silva Rogaciano)
Narrado em 1ª pessoa, é a história de um homem já idoso que recorda a passagem do diabólico circo Le Monde Bizarre em sua cidade, há mais de setenta anos, quando ele era apenas uma criança. O circo de Monsieur Tissot deixou a sua marca de sangue e violência naquele vilarejo, trazendo a desgraça para todos os seus moradores.
O narrador revela como ele conseguiu sobreviver e se vingar das atrocidades cometidas. O leitor tem um final surpresa. Gostei da narrativa em clima de suspense e com uma certa melancolia.
11 – Remendos da carne (Rafael Sales)
A pedofilia volta a ser abordada nesta coletânea de terror. O autor faz uma abordagem direta e crua do problema, mas sem se utilizar de elementos gore. Apesar de um enredo violento, não vemos vísceras, canibalismo e outros elementos típicos do gênero visitando o conto. Salles apela mais para detalhes sobrenaturais.
Uma velha enrugada, corcunda e corpulenta, parecida com uma bruxa, se apresenta no picadeiro do Circo dos Horrores com a sua atração: uma boneca de pano toda remendada, mas parecida com uma menina de carne e osso. Nem mesmo as horríveis cicatrizes dos remendos em seu corpo quebra essa impressão. Não posso adiasntar mais nada, sem o risco de liberar spoilers; portanto, melhor parar por aqui.
12 – O trailer (A.Z. Cordenonsi)
Uhau!! Chegamos, na minha opinião, ao primeiro dos dois melhores contos da antologia de terror da Estronho. Que conto! Bernard resolve visitar sua mãe que há quatro anos, decidiu aceitar o emprego de Monsieur Serge Tissot para trabalhar junto ao pessoal de apoio como cozinheira do circo e percorrer o mundo. Bernard percebe que o trailer vizinho ao de sua mãe, habitado por uma velha quase inválida, todas as madrugadas passa por uma misteriosa reforma, ficando cada dia mais bonito. Ocorre que ninguém, incluindo Bernard, conseguem descobrir quem são as misteriosas pessoas que fazem essa reforma.
Certa noite, decidido a descobrir o mistério que cerca o trailer da velha, o garoto resolve ficar acordado até mais tarde e então... Brrrrrrrrr!!! “Infelizmente” li o conto de Cordenonsi já bem tarde da noite; resultado: não consegui dormi.
Contaço!!
13 – Faça seu pedido (G. Araújo)
Parabéns para essa escritora paulista de apenas 26 anos. Parabéns, mesmo. Devorei “Faça seu pedido” com todo o meu apetite porque não via a hora de saber o que iria acontecer com aquela atriz de 5ª categoria que só conseguia papéis de figurante nas peças em que trabalhava. A sua vida muda no momento em que ela decide assistir um espetáculo do circo de Tissot e acaba sendo convidada a participar de um número; persuadida, a mulher acaba fazendo um pacto. O lance do caderninho de pedidos foi muito criativo e fugiu dos estereótipos das histórias convencionais e já muito batidas envolvendo os famosos pactos que as pessoas fazem com o mal para se darem bem, mas acabam se dando... mal.
Ah! O conto é narrado em 1ª pessoa, pela própria atriz, o que o deixa ainda mais interessante.
Recomendo a leitura.
14 – O ocupante do carro vermelho (M.D. Amado)
Achei o plot sobrenatural envolvendo a longevidade de Monsieur Tissot um pouco sem graça. Acho que por isso, a leitura se tornou arrastada. Na história, o dono do Circo dos Horrores promete apresentar uma atração que fará todos os espectadores ficarem paralisados de medo em seus assentos: um demônio capturado diretamente das profundezas do inferno. Quando ele, finalmente traz para o picadeiro a criatura bestial, a confusão se instala. A verdadeira origem da besta é revelada perto do final da história.
Taí um resumo dos 14 contos de “Le Monde Bizarre – O Circo dos Horrores”. Como já escrevi nesse post, alguns contos muito bons, outros nem tanto; mas todas as coletâneas não são sempre assim?
Inté!

Postar um comentário

Instagram