29 junho 2012

Obras Primas do Conto Fantástico


Vou revelar algo... Não sou do tipo que se influencia com histórias ou contos sobrenaturais. Posso levar aquele impacto de momento e até mesmo ficar uns dois ou três dias com os pelinhos da nuca eriçados, mas depois ‘zefini’. Por mais amedrontador que seja, o “causo” sempre passa sem deixar marca. Bem... quero dizer... a não ser naquela noite... Caraca!! Porque tenho que recordar justamente aquela noite!! Ok., já que comecei vamos à ela.
Tudo teve início há uns 15 anos, quando o blogueiro aqui, juntamente com um grupo de amigos resolveu acampar numa propriedade, digamos que ‘isolada do resto do mundo’, onde acontecia uma cavalgada; festa tradicional em nossa região. A fazenda tinha o seu próprio acampamento, mas a nossa tchurma optou por levantar as barracas num lugar afastado, perto de uma lagoa. Então, todas as noites, reuníamo-nos em torno de uma fogueira e começamos a jogar conversa fora. Na segunda noite de evento, após cavalgarmos bastante, estávamos eu, o Digão, o Francisco, a Kika, a Junia e o Marquinhos reunidos em volta da inseparável fogueira, quando perto da madrugada friorenta, o Digão (sempre ele – rs) teve a idéia de fazer um jogo que consistia em que cada um dos seis contasse uma lenda urbana. Aquela que mais assustasse seria a vencedora. Nós mesmos, de comum acordo, faríamos a escolha da estória mais apavorante. E lá vamos nós...
Duas lendas urbanas, se não me engano narradas pela Junia e o Marquinhos, me perseguem até hoje. A primeira, da Junia, sobre um casal de namorados que está no maior dos amassos dentro do carro numa clareira isolada; e prá variar, de madrugada. Os dois ouvem um barulho estranho no meio do mato, bem próximo ao veículo e assustados, resolvem ir embora. Enquanto estão na estrada, a moça resolve ligar o rádio e ouve a seguinte notícia: “Fugiu de um manicômio um perigoso homicida. A sua aparência é terrível, já que não tem orelhas, a metade do nariz, além dos dentes podres, tortos e encavalados. Ele está usando uma roupa de palhaço o que torna a sua aparência ainda mais horrorosa. Muitas pessoas que viram o “monstro” acabaram desmaiando, o que facilitou o seu trabalho. Ele não tem a mão direita, que foi substituída por um gancho, o qual usa para destripar as suas vítimas. Qualquer informação, favor avisar a polícia através do número...”
Após ouvir a notícia, o assustado casal de namorados descobre que o carro está quase sem combustível. Então, eles resolvem parar num posto de beira de estrada.  Ao descer do carro para pagar o frentista... o que é que acontece???. Tanto o rapaz quanto o frentista olham assustados para um horrível gancho todo ensanguentado grudado na traseira do carro que encontra-se toda riscada.”
Lenda urbana: O assassino do gancho
Cara!! Depois que a Junia me contou essa lenda urbana. Ai, Ai, Ai!!! Ela me persegue até hoje.
Quanto a segunda lenda, contada pelo Marquinhos, prefiro deixar pra lá... não estou com disposição, nem estômago para narrar a história daquele sujeito que tinha o hábito de olhar debaixo da cama todas as noites antes de dormir... Detalhes: ele morava sozinho e ficava lendo histórias de terror até de madrugada... Numa dessas noites solitárias, ele se abaixou e no momento em que olhou por debaixo de sua cama... bem melhor deixar prá lá... A lenda urbana da Junia ainda dá para ‘engolir’ fazendo careta, mas a do Marquinhos, acho que o coração do balzaqueano aqui não agüentanria. Além do mais estou escrevendo esse post por volta de 23 horas. Melhor esquecer.

Olhar embaixo da cama não é um bom negócio
Mas pêra ai! Você deve estar se perguntando o que tudo isso que eu escrevi tem a ver com “Obras Primas do Conto Fantástico”, livro de contos de terror lançado em 1961 pela Martins Editora. E eu respondo: Cara! Tem tudo a ver, pelo menos no meu caso! O mesmo medo e desconforto que senti, ou melhor, ainda sinto, com essas lendas urbanas acabou se repetindo, após ter lido os contos do livro. No dia em que comecei a ler as 27 estórias curtas de terror de feras como Edgar Allan Poe, Maupassant, H.G. Wells e pasmem Monteiro Lobato! Isso mesmo, Monteiro Lobato, entre outros; foi como se tivesse entrado numa máquina do tempo e voltado 15 anos atrás naquele acampamento, à noite, com os meus amigos, sentados ao lado de uma fogueira, ouvindo aquelas estorinhas macabras.
Não que a coletânea de contos, brilhantemente organizada por Jacob Penteado, traga apenas em seu contexto lendas urbanas; há histórias de terror de todos os tipos, do gótico ao fantástico, e passando por seres fantasmagóricos. Ocorre que as histórias metem medo, de fato, podendo ser consideradas verdadeiras obras primas do gênero, fazendo jus ao título do livro.
Não vou comentar nesse espaço todos os 27 contos selecionados por Penteado, quero citar apenas três. Os três que conseguiram provocar aquele arrepio esquisito que começa na base da espinha e vem subindo... subindo... por toda a extensão da coluna vertebral até atingir a nuca, arrepiando todos os cabelinhos do pescoço. Urrrrrrrr
O Fantasma Inexperiente (H.G. Wells).
Este conto foi aquele com o qual mais me familiarizei, pois os personagens e o contexto da narrativa lembram muito a situação que vivi com os meus amigos contadores de histórias de 15 anos atrás. Vamos à ele...
Num fim de semana, Clayton resolve reunir os seus amigos em um clube, onde habitualmente se encontram, para contar uma história estranha e ao mesmo tempo macabra. Ele relembra que certa noite, quando estava sozinho no clube, encontrou um fantasma perambulando pelos corredores. Clayton não dá a mínima para os olhares incrédulos e perguntas sarcásticas de seus amigos e segue com o relato tranquilamente. Clayton diz ser este um fantasma único, que guardara traços de seu ser terreno, um fantasma fraco, sem talentos fantasmagóricos e inexperiente. Após conversar com o fantasma, ele descobre que o espectro saiu do mundo dos mortos e ficou perambulando, meio perdido naquele clube, local tão  propício a uma assombração, com seus corredores sóbrios e painéis de madeira nobre. Para voltar ao seu mundo ou a sua dimensão, o inexperiente fantasma deve fazer uma espécie de dança com uma sequencia de movimentos únicos numa ordem premeditada que o pobre coitado não consegue reproduzir. Chega um momento, que finalmente, o fantasma acerta os movimentos e assim, vai embora para a terra dos mortos.
Quando chega a esse ponto da história, Clayton já consegui arrebatar a atenção de todos os seus amigos que se encontram em torno da mesa do Clube – e não de uma fogueira (rss) – é quando acontece o inusitado! Aliás, um inusitado arrepiante, daqueles de provocar c-a-l-a-f-r-i-o.
Bugio Moqueado (Monteiro Lobato)
Monteiro Lobato
Pode parecer incrível, mas é verdade. Um dos maiores autores de histórias infantis do mundo que fez a alegria de milhares de crianças no Brasil com Narizinho, Pedrinho, Dona Benta e companhia, também escreveu um dos contos de terror mais apavorantes que já li em minha vida.
Diz o ditado que o escritor de terror que se preze deve ter a capacidade de assustar escrevendo histórias que se enquadrem num contexto real, utilizando elementos que fazem parte do nosso dia a dia, sem apelar para monstros, fantasmas, seres sobrenaturais e outras “cositas más”. Posso afirmar com toda convicção que após ler “Bugio Moqueado”, cheguei a conclusão que Monteiro Lobato faz parte desse grupo seleto.
O conto que me provocou calafrio tem como cenário uma fazenda localizada lá nos confins de Mato-Grosso. É narrado por um velho que recorda a terrível experiência vivida na fazenda do coronel Teotônio, onde foi comprar algumas cabeças de gado.
Ao chegar na propriedade, ele é recebido pelo coronel que tem fama de carrasco, maldoso e sem escrúpulos. Antes de fechar o negócio, o narrador da história é convidado a se sentar à mesa para jantar. É a partir daí que o caldo engrossa. “Sente só” alguns trechos do conto terrificante: “Era um casarão sombrio, a casa da fazenda. De poucas janelas, mal iluminado, mal arejado, desagradável de aspectos e por isso mesmo toante na perfeição com a cara e os modos do proprietário...” “A sala de jantar semelhava uma alcova. Além de escura e abafada, rescendia a um cheiro esquisito, nauseante, que nunca mais me saiu do nariz — cheiro assim de carne mofada…”. Quer mais?, OK? Confere só esse trechinho: “Sentamo-nos à mesa, eu e ele, sem que viva alma surgisse para fazer companhia. E como de dentro não viesse nenhum rumor, conclui que o urutu morava sozinho... “ “Em dado momento o urutu, tomando a faca, bateu no prato três pancadas misteriosas. Chama a cozinheira, calculei eu. Esperou um bocado e, como não aparecesse ninguém, repetiu o apelo com cer­to frenesi. Atenderam-no desta vez. Abriu-se devagarinho uma porta e... e... e...  bem vou parar por aqui.
Só um lembrete. Saibam que bugio significa uma espécie de macaco ou então um termo para classificar uma pessoa feia e desengonçada.  Já o significado de moquear é secar a carne no fogo para conservá-la.
Bem... leiam o conto; mas se preparem muito bem antes.
A Mão do Macaco
Quer ser perseguido por pesadelos macabros? Então leia esse conto antes de dormir. Talvez, você nem chegue na fase dos pesadelos, já que “A Mão do Macaco” não irá deixá-lo dormir. Isto quer dizer que a sua noite será ....inesquecível; no pior dos sentidos.
O conto foi escrito pelo londrino William Wymark Jacobs e publicado pela primeira vez em 1902, alcançando um grande sucesso. A história foi adaptada para o teatro e o cinema inúmeras vezes, mesmo assim, muitas pessoas ainda não conhecem esse conto.
“A Mão do Macaco” nos ensina uma importante lição: a de que o homem jamais deverá desejar muito o que quer que seja, pois o bem alcançado  nem sempre vale o que se perdeu para conquistá-lo.
Neste conto, um casal ganha um amuleto maldito, o qual resolve utilizá-lo para satisfazer a sua ganância. Eles tem direito a três pedidos. É aí que o terror começa...
Além desses três contos, “Obras Primas do Conto Fantástico” brinda os seus leitores com muitas outras histórias horrendas (no bom sentido, é claro. Ehehehe).
É evidente que em todas as obras de coletâneas, sejam de terror ou não, nem todos os contos agradam. No livro organizado por Jacob Penteado não é diferente; existem, com certeza, aquelas narrativas mais fracas, mas por outro lado, pode acreditar que a maioria dos 27 contos vale a pena ser lido.
Confiram a relação das histórias e seus autores:
01 – Avatar (Teófilo gautier)
02 – O Espelho (Gastão Gruls)
03 - Um louco? (Guy de Maupassant)
04 – Métempsicose (Walter Poliseno)
05 – Os Ratos do Cemitério (Henry Kuttner)
06 – Delírio (Afonso Schmidt)
07 – O Diabo Maltrapilho (Victor Hugo)
08 – A Mão do Hindu (Conan Doyle)
09 – O Macaco Travesso (Matteo bandelo)
10 – Uma Noite Sinistra (Afonso Arinos)
11 – O Recoveiro (Alexandre Pushkin)
12 – Os Óculos de Titbotton (Jorge William Curtis)
13 – Camarote 105, Beliche de Cima (Marion Crawford)
14 – A Mão do Macaco (William Wymark Jacobs)
15 – A Missa das Sombras (Anatole France)
16 – O Fantasma Inexperiente (H.G. Wells)
17 – A Senhora Frola e o Senhor Ponza (Luigi Pirandello)
18 – A Experiência do Doutor Velpeau (Villiers de L'Isle Adam)
19 – O Rei dos Leprosos (Jack London)
20 – A Máscara Vazia (Jean Lorrain)
21 – Encontro em Samarra (Somerset Maughan)
22 – A Mentira (Leónidas Andreyeff)
23 – O Que o Diabo me Contou (Giovanni Papini)
24 – A Ficha nº 20.003 (Viriato Correa)
25 – William Wilson (Edgar Allan Poe)
26 – O Jogador Generoso (Charles Baudelaire)
27 – Bugio Moqueado (Monteiro Lobato)
Ah! Antes que esqueça. Deixe-me dar  uma excelente notícias. Você pode encontrar “Obras Primas do Conto Fantástico” em qualquer sebo on line...
Boa leitura... e bons sustos!
Inté!

22 junho 2012

A Estrada para Gandolfo

Imagine esta situação: João Paulo II, o papa mais querido da história e amado por todos, sendo seqüestrado. Os criminosos conseguem ludibriar o forte aparato de segurança do pontífice e levá-lo para um lugar desconhecido onde o mantém refém. O preço do resgate: um dólar por cada católico existente no mundo.
Esta situação assusta não é mesmo? Errado. Pelo menos para o consagrado autor de livros de espionagem Robert Ludlum, criador da “Saga Bourne”. Guardadas as devidas proporções, e essas “devidas proporções” dizem respeito ao nosso saudoso João Paulo II, que não participa do livro, Ludlum fez desse enredo uma história leve e por incrível que possa parecer: engraçada. Isso, mesmo! Engraçada! Não estou delirando. O mestre dos romances de espionagem e contra-espionagem “da pesada”, com muitas intrigas, mortes, traições e violência, criou um enredo carrego no humor.
Em “A Estrada para Gandolfo”, o autor conta a história fictícia do espetacular seqüestro do também fictício papa Francisco I, o mais querido pontífice depois de João XXIII, este real. Vale lembrar que na época em que o romance foi escrito, 1975, Karol Woityla ainda nem sonhava ser chamado de João Paulo II. O papa naquela época era Paulo VI que sucedeu João XXIII em 1963, mas que nunca conseguiu alcançar a popularidade do seu antecessor. Por esse motivo, Ludlum resolveu “pular” Paulo VI e “pegar” João XXIII  para uma pequena ponta em seu livro.
A história do advogado atrapalhado Samuel Devereaux e de um general de meia idade aposentado e também ‘maluco de pedra’’, Mackenzie Hawkins,  que um dia resolvem seqüestrar o famoso Papa é hilariante. Mas não se enganem os leitores acreditando que o enredo só trás risadas e trapalhadas. Nada disso. Afinal de contas, a história foi escrita por um dos maiores autores de romances de espionagem do mundo e que num belo dia, sofreu uma recaída e resolveu escrever um “textinho” diferente, saindo da sua rotina de tiros, traições, mortes e espiões perigosos. Nasceria, assim, “A Estrada para Gandolfo”.  
A estória de Devereaux,  Mackenzie e Francisco I tem muito humor sim; mas também tem doses na medida exata de suspense, intrigas e porque não, espionagem; mas no final o que prevalece mesmo é o humor e aquele humor leve, gostoso que prende o leitor do começo ao fim, fazendo com que devore as páginas do livro rapidamente.
A sacada de Ludlum foi fantástica, daquelas que os escritores só tem uma vez na vida. Imagine só, o maior mandatário religioso do mundo sendo seqüestrado, com os seus algozes pedindo como resgate um dólar de cada um dos católicos espalhados pelo mundo afora. Não há como negar que se trata de um enredo que foge da rotina habitual. Não é para menos que o livro se tornou Cult em todo mundo, transformando-se num dos maiores sucessos literários do “pai” do perigoso espião Jason Bourne.
A trinca de personagens principais formada por Devereaux, Mackenzie e o papa Francisco I é divertida sem ser sem graça. Os dois seqüestradores vivem uma situação conflituosa, recheada de discussões. É o seqüestrado, o papa Francisco I, que acaba sendo o ponto de equilíbrio nesses conflitos, procurando sempre acalmar os ânimos do advogado atrapalhado e do major tresloucado.
Querem uma prova da falta de malícia de Devereaux e da loucura de Mackenzie? Está bem... basta dizer que o primeiro cometeu um dos maiores erros de investigação que o mundo já conheceu, ao acusar um inocente em vez do culpado!! A causa? É que ambos eram muito parecidos, além de serem primos e generais do exército americano. Essas semelhanças teriam causado uma certa confusão em Devereaux, dando um nozinho em sua cabeça. Quanto ao general Mackenzie, considerado um verdadeiro herói de guerra ‘recheado’ de condecorações e respeitado por todos os americanos, na realidade não passa de um cabeça dura e desequilibrado. Caso contrário, ele não teria destruído os órgãos genitais de um estátua sagrada na China e mijado na bandeira dos Estados Unidos. Após esses gestos, Mackenzie, seria preso na China e abandonado pelo governo de seu país.
Agora imagine o que acontece quando essas duas pessoas se encontram!! Pior do que isso: quando resolvem seqüestrar um líder religioso respeitado em todo mundo?!
O final do livro é do tipo “engana leitor”. Sabe aqueles enredos que vão sendo bem amarrados e que prometem caminhar para um final esperado? Novamente, esqueça. “A Estrada para Gandolfo” apresenta um final, digamos que pouco convencional e o responsável por essa reviravolta na história é ninguém mais, ninguém menos do que o papa  Francisco I.
Acho que vou parar por aqui, senão vou acabar ‘spoilando’ a obra de Ludlum o que seria um grande pecado.
Leiam; com certeza gostarão!

17 junho 2012

Trilogia polêmica de Anne Rice reescreve conto infantil dos Irmãos Grimm de maneira erotizada

Já foi há época em que Branca de Neve, Bela Adormecida e outros contos infantis embalavam o sono de inocentes crianças. Os tempos são outros e esses contos, outrora cheios de pudores, ganharam tintas bem mais pesadas por seus pintores; quer dizer, autores. Tintas tão pesadas que a sua leitura deixou de ser recomendada para “tenras” idades (rs). Mas não posso negar que apesar do contexto pesado e sombrio dessas obras, elas tem o seu valor, principalmente a trilogia sobre Bela Adormecida escrita pela conhecida autora norte-americana, Anne Rice que rompeu todos os paradigmas envolvendo o famoso conto infantil.
Fiquei surpreso com a ousadia da escritora em desmistificar, sem medo de ser apedrejada ou então queimada viva numa fogueira, o antológico e inocente conto dos Irmãos Grim, publicado em 1812.
Antes de escrever esse post, uma amiga de uma amiga minha, me disse que os Irmãos Grimm deviam estar se remexendo no túmulo por causa do ‘sacrilégio’ de uma autora libidinosa. Iahuuuu!! Gente, palavras dela heinn (rssss). E continuou: “Onde já viu uma coisa dessas! Transformar uma história tão pura e que encantou milhares de crianças numa pouca vergonha dessas!”. Essa amiga da minha amiga que é mãe e que também não é tão velha assim, ficou perto de sofrer um infarto quando lhe disse que havia lido o primeiro volume da trilogia. –“O queeee???!!!!!!. Nãoummmm acredito que você fez isso!!”
Quando vi que não iria valer a pena um debate sobre o assunto; já prevendo que a amiga puritana da minha amiga iria condenar a minha alma para o inferno, dei uma desculpa que o meu celular estava tocado (modo silencioso, é claro) e simplesmente caí fora...
Mas tenho certeza que essa pessoa não foi a única que excomungou Anne Rice por ter reescrito num tom erótico a fábula dos Irmãos Grimm. Muitas outras pessoas não aceitaram ver um conto que encantou milhares de crianças ser transformado numa ousada estória para maiores de 18 anos e bota 18 anos nisso!
Mas se fôssemos analisar o desenvolvimento do universo literário de um modo tão simplista, jamais teriam surgido tantas obras consideradas malditas em sua época, mas que com o passar do tempo acabaram sendo aceitas e respeitadas pela maioria das pessoas, que o diga “O Amante de Lady Chatterley” de D.H. Lawrence, escritor escorraçado em sua época, mas que neste novo milênio acabou ganhando o status de gênio. Quanto ao seu livro taxado em épocas idas de uma obra pornográfica sem nenhum valor, hoje é reconhecido como uma verdadeira obra prima.
Com relação a trilogia “Erótica”, de Anne Rice, lançada, recentemente, pela editora Rocco e composta pelos livros: “Os desejos da Bela Adormecida”, “A punição da Bela” e “A libertação da Bela”, considero, sem nenhum alarde puritano, uma reescritura adulta, muito bem feita, da fábula “A Bela Adormecida” e com um forte apelo erótico. Mas vale lembrar que há livros bem mais ‘erotizados’ do que esse, inclusive a obra de Lawrence.
No primeiro livro “Os desejos da Bela Adormecida”, ao invés do beijo inocente e puro dado pelo príncipe, a Bela  é despertada de seu sono de 100 anos através do ato sexual. Esse contato carnal entre dois abre as portas para a iniciação sexual da princesa que acaba sendo obrigada a pagar um alto preço por ter sido libertada do feitiço que a mantinha adormecida. O príncipe exige que Bela se torne a sua escrava sexual, ficando inteiramente submissa à ele. A jovem, então, é levada para o castelo do príncipe onde terá de se submeter a provações inimagináveis como prova da sua entrega e dedicação.
Neste primeiro volume, Anne Rice transporta o leitor para um mundo onde não há tabus sexuais e onde as idéias tradicionais de submissão e preferências sexuais são desprezadas.
No segundo livro da trilogia, “A punição de Bela”, a princesa mantida como escrava sexual passa de favorita do príncipe a renegada, depois de se envolver com Tristan, também escravo na corte. Vendidos para senhores diferentes, Bela e Tristan são então separados e, em meio a intensos jogos eróticos, se acostumam a castigos cada vez piores.
A “Trilogia Erótica” de Rice encerra-se com o volume “A libertação de Bela”. Neste livro temos a conclusão da saga de Bela e Tristan.  Depois do príncipe despertar a Bela Adormecida para um mundo infinito de sensações e prazer; depois de ser submetida aos jogos de crueldade, domínio e submissão com o Capitão da Guarda em “A Punição da Bela”, encontramos, agora, a princesa cativa de um sultão e prisioneira de um harém. No final, Bela encontra o verdadeiro amor, que nada mais é do que a sua libertação.
Portanto, não vejo motivo para tanto alarde em torno da trilogia de Rice. Para aqueles que, certamente, irão me questionar dizendo: “como pode o cara criticar, em seu blog, o livro “O Fã Clube” e depois exaltar a “Trilogia Erótica”. Primeiro: não estou exaltando a obra de Rice; só li o primeiro volume e prá ser sincero, não sei se irei incluir os outros dois em minha lista de leitura, já que tenho outras prioridades literárias. Apenas li e gostei, como gostei de outras trilogias, mas talvez não o suficiente para ter fôlego para ler os volumes seguintes. Segundo: “O Fã Clube” é uma aberração sadomasoquista sem nenhum sentido. Quase todo o livro se resume a uma atriz famosa, sequestrada por um grupo de fãs paranóicos, presa numa casa abandonada, a maior parte do tempo em uma cama, sendo obrigada a satisfazer os desejos sexuais de um bando de seqüestradores ensandecidos. Já, a obra de Rice, levando-se em conta “Os desejos da Bela Adormecida”, que eu li e também algumas críticas sobre os dois outros volumes seqüenciais, procura expor de uma maneira adulta o universo de fetiches e erotismo embutido na fábula dos Irmãos Grimm. E, diga-se de passagem, de uma maneira muito bem feita.

10 junho 2012

A lenda do cavaleiro sem cabeça

Tão diferentes como a água e o vinho e a noite e o luar. É assim que podemos definir o livro “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça” e o filme de Tim Burton baseado nessa obra. Posso dizer, sem medo de errar, que a produção cinematográfica foi, “só”, levemente – e bota levemente nisso! – baseada na obra literária de Washington Irving, escrita entre 1829 e 1830.
As diferenças são gritantes, à começar pelo personagem principal Icabode Crane. Ahã!! Pensaram que o astro da história seria o ‘afamado’ cavaleiro sem cabeça, não é mesmo??! Pois é, na realidade o protagonista, tanto no livro quanto no filme, é o Sr. Crane, apesar de o cavaleiro sem cabeça, vivido por Christopher Walken, ter tido uma presença marcante no filme de Burton. Bem... já no livro de Irving, a presença do misterioso ser é mais discreta, sendo citado apenas nas histórias contadas pelos moradores supersticiosos da cidade Greensburgh que se reúnem a noite para ‘gargantear’ as suas lendas urbanas; mesmo assim o cavaleiro tem uma aparição apoteótica nas últimas páginas do romance quando empreende uma perseguição mortal ao Sr. Crane.
As diferenças existem tanto à nível de personagens quanto à nível de enredo. O Icabode Crane de Washington Irving é um professor matusquela, de braços compridos, alto e magro como uma ‘vara de cutucar bambu’. Ele é narigudo, inclusive seu nariz é descrito pelo autor como semelhante a um catavento. Ah! E mais! Cabeça pequena e chata, orelhas colossais e olhos verdes, enormes e vítreos. Sem contar que os seus pés poderiam lhe servir de pás; em outras palavras: o sujeito era ‘pezudo’. Cá entre nós, vamos ser sinceros, o pobre coitado era feio de dar dó.
Por outro lado, o Icabode Crane do filme era ninguém mais, ninguém menos do que Johnny Depp, um dos maiores galãs de Hollywood, que por incrível que pareça, mesmo quando quer ficar feio, bruto e trapaceiro, o tiro acaba saindo pela culatra, que o diga o seu famoso personagem Jack Sparrow, de Piratas do Caribe. O sujeito tem dentes de ouro horríveis, é desengonçado, tem uns trejeitos efeminados e mesmo assim, ainda tem uma aura sensual, deixando as mulheres completamente enlouquecidas.
Agora, imaginem o Johnny Depp interpretando um personagem sofisticado, charmoso, elegante, inteligente e bonito; se bem, que a exemplo do Jack Sparrow, também seja um pouco esquisito. “Entãoce”(rs), o Icabode Crane reescrito por Tim Burton tem todas essas características, ao contrário do pobre coitado original criado por Washington Irving.
E as diferenças não se restringem apenas à composição dos personagens. A história também tem contextos divergentes. Enquanto o Sr. Crane do Livro é um supersticioso e simplório professor da pequena cidade onde ocorrem os fatos fantasmagóricos; o Crane do cinema é um detetive moderno que não acredita  em fantasmas e que procura resolver tudo da maneira mais racional possível, apesar das estranhas engenhocas que utiliza para esse fim. O Crane do livro era um pobretão, pois o que ganhava mal dava para se alimentar, o que lhe obrigava a se “auto-coinvidar” para almoçar ou jantar nas casas dos pais de seus alunos. O Crane do cinema teve o privilégio de ser considerado um convidado de honra das famílias de Greensburgh com a difícil missão de solucionar a série de estranhos assassinatos ocorridos na cidade e que todos atribuíam ao misterioso cavaleiro sem cabeça.
No livro, Crane faz de tudo para conquistar Katrina Van Tassel, a moça mais cobiçada do vilarejo, enquanto ela não dá a mínima para o professor. Na produção de Burton, é a bela Katrina quem joga charme para o detetive
Quanto ao cavaleiro sem cabeça, o personagem acaba tendo uma participação muito maior no filme do que no livro. Irving preferiu mostrar o personagem de maneira camuflada, ou seja, através das histórias contadas pelos supersticiosos habitantes de Greensburgh. Na realidade, ele só vai aparecer, de fato, nas últimas páginas do romance, na trepidante perseguição, de tirar o fôlego, empreendida sobre Icabode Crane.
Não acreditem que eu preferi o filme ao livro “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”. Não é bem assim; se querem saber, gostei demais da obra de Washington Irving; mais do que o filme de Tim Burton. No romance, o leitor encontra suspense, terror, intrigas e comicidade. E tudo isso, em pouco mais de 70 páginas com ilustrações. Já o filme, mudou completamente os personagens, conseguindo descaracterizá-los. Penso até que se um Icabode Crane semelhante ao livro, dentro do enredo simples, mas eficiente de Irving, fosse dirgido por Tim Burton faria muito mais sucesso... 

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