Escritores que transformaram lendas brasileiras em livros de terror

22 junho 2022

Saci Pererê, Mula-Sem-Cabeça, Boitatá, Bicho-papão. Certamente, esses famosos personagens do folclore brasileiro perderam ao longo décadas e mais décadas a capacidade de assustar ou incutir pavor nas pessoas. Com o avanço da ciência e da globalização à passos largos, eles passaram a ser vistos, unicamente, símbolos inofensivos – mas muito importantes - da nossa crendice popular. 

Esta visão de hoje era completamente diferente na época dos nossos bisavós quando tais figuras folclóricas tinham o poder de assustar os caixeiros viajantes daquela época que cortavam estradas desertas para negociar os seus produtos.

Quero propor algo para a galera. Que tal entrarmos numa máquina do tempo e retornarmos apara a época dos nossos bisavós quando o Saci Pererê ou a Mula-Sem-Cabeça ainda assustavam, e muito? Ok. Então, vamos nessa. Os livros serão a nossa máquina do tempo. Nesta postagem escolhi seis obras cujos autores brasileiros conseguiram transformar figuras pitorescas e porque não, até inocentes, do nosso folclore, em personagens horripilantes com a capacidade de assustar até mesmo os leitores mais corajosos. Vamos lá!

01 – O Escravo de Capela (Marcos DeBrito)

Esqueça o amigável Saci Pererê de Monteiro Lobato. A origem da criatura é aqui resgatada por meio de lendas contadas por senhores de engenho e por descendentes africanos. 

O Saci idealizado por Marcos DeBrito é um escravo torturado e executado que volta para o acerto de contas com os algozes. É no sadismo destes que a obra mostra seu real terror. Portanto, esqueça o Saci peralta e ‘boa gente’ do Sítio do Pica-Pau Amarelo. O personagem de O Escravo de Capela é vingativo, sanguinário e violento.

Em seu livro, DeBrito utiliza como cenário, a cruel época do Brasil Colônia quando a escravidão reinou no País. Já aviso que a carga dramática do livro é enorme e com alguns trechos bem violentos, inclusive um certo momento que deverá chocar muitos leitores. Afinal, não poderia ser diferente, já que naquela época, a violência desmedida predominava nas grandes fazendas de engenho que mantinham centenas de escravos nas senzalas vivendo sob as piores condições, além dos pelourinhos onde vários desses escravos eram castigados de maneira cruel. Toda essa realidade é retratada no livro.

Ficha Técnica

Autor: Marcos DeBrito

Editora: Faro Editorial

Ano: 2017

Páginas: 288

02 – Assombrações do Recife Velho (Gilberto Freyre)

O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) sempre nutriu grande interesse por lendas macabras e histórias de fantasmas. Prova disso é o livro Assombrações do Recife Velho publicado em 1955. A obra traz mais de 30 instigantes crônicas sobre as fantasmagorias da capital pernambucana — um velho teatro assombrado, tesouros revelados por almas penadas, espíritos pecadores em desespero pedindo missas e orações, lobisomens perseguindo mulheres, um morto-vivo abordando passantes nas ruas à noite, e por aí vai. Textos que recontam, de forma muito particular, as lendas e os “causos” pertencentes ao imaginário dos moradores da cidade, ou mesmo ocorrências inexplicáveis que chegaram a ser registradas pela imprensa nas primeiras décadas do século 20.

Lendas populares, tais como: Perna Cabeluda, Boca de Ouro e a Emparedada da Rua Nova, que fazem parte da história dos 480 anos de Recife fazem parte do livro de Freire.

A obra, com 27 histórias d’outro mundo, é considerada referência e fonte de pesquisa sobre os relatos assombrados da capital pernambucana. 

Ficha Técnica

Autor: Gilberto Freyre

Editora: Global

Ano: 2008

Páginas: 232

03 – Terra de Sonhos e Acaso (Filipe de Campos Ribeiro)

Em Terra de Sonhos e Acaso, o escritor paulista Filipe de Campos Ribeiro povoa uma cidade fictícia do interior de São Paulo com sinistras criaturas de nosso folclore. 

Campos Ribeiro narra a história de Ismael que após a morte dos pais, decide voltar ao interior de São Paulo para reaver sua herança. Inundada por uma tempestade e isolada do mundo a pequena e fictícia cidade de Rio das Almas está sob intervenção militar. Seus habitantes, acuados por estranhos crimes, professam uma inquietante religiosidade baseada num livro de autor desconhecido.

Assim, sem nenhum familiar, Ismael decide viajar até essa cidade onde pretende, além de vender a casa de seus pais, também encontrar-se com um velho amigo de infância. Ao retornar para a casa onde passou suas férias por tanto tempo, começa a constatar alguns acontecimentos estranhos em volta do imóvel, principalmente em uma casa abandonada localizada logo ao lado. Ismael testemunha aparições de uma jovem sinistra e que lhe mete um medo danado. Esta aparição faz com que ele procurar a ajuda da prefeita da cidade e também de um padre. Eles dão orientações para Ismael sair urgentemente da cidade.

Preste atenção nos elementos do folclore brasileiro que aparecem na trama.

Ficha Técnica

Autor: Filipe de Campos Ribeiro

Editora: Martin Claret

Ano: 2019

Páginas: 305

04 – A Sombra da Lua (Marcos DeBrito)

E você ainda tinha dúvidas se o famoso lobisomem, lenda difundida na região Norte do nosso País, faria parte dessa lista? O famoso ‘peludão’ não pode faltar. 

A besta fera do livro de Marcos DeBrito é visceral, sem lado bom, e segue apenas os seus instintos animais. Por isso, vários trechos do livro que envolvem o ataque do lobisomem chegam a ser chocantes e podem incomodar os leitores mais sensíveis, como por exemplo, o momento em que o personagem já na sua forma humana, no dia seguinte após a metemorfose, ao despertar, encontra pedaços de carne humana mal mastigados em sua boca. Arghhhhhhhh!!

A narrativa de A Sombra da Lua acontece em dois tempos distintos: final do século XIX mostrando detalhes da vida de Bastiano e Clemenzia, pais de Álvaro, imigrantes italianos que chegam ao Brasil em 1893 com a esperança de uma vida nobre justificada pelo trabalho, onde acabam se tornando pequenos agricultores. E o início do Século XX, mostrando o drama dos moradores de Vila Socorro – um pequeno vilarejo no interior de São Paulo - que em 1920 veem as suas vidas atormentadas por um ciclo de mortes que ocorre apenas nas noites de lua cheia quando corpos de pessoas e animais são encontrados trucidados nos arredores da floresta.

A origem da besta fera que ataca impiedosamente os moradores de Vila Socorro tem ligação direta com esses dois períodos de tempo (1893 e 1920).

Ficha Técnica

Autor: Marcos DeBrito

Editora: Rocco

Ano: 2013

Páginas: 288

05 – O Paciente do Dr. Van Linden (Jonas Filho)

Ainda me lembro que durante a minha infância, tinha uma vizinha que vivia “gritando” para os seus dois filhos menores: - Olha que o “Homem do Saco” vai passar daqui a pouco ‘catando’ os meninos que ficam brincando até tarde na rua”! – Pois é, era só falar isso que os garotos sumiam da rua; viravam pó (rs). 

Existem muitas histórias em torno do personagem que se dedica a levar embora, dentro de um saco, as crianças que se comportaram mal. Na região Sudeste, o personagem folclórico ficou conhecido com o “Homem do Saco” ou o Velho do Saco”.

Mas para quem foi criado em Pernambuco, Paraíba e algumas outras áreas do nordeste brasileiro, pode contar-nos com detalhes, uma história bem mais assustadora. Por lá, o “Homem do Saco” é conhecido por “Papa-Figo”. Trata-se de uma lenda popular contada no boca-a-boca, de um homem de aparência horrenda, orelhas grandes, portador do Mal de Hansen e Doença de Chagas. Este infortúnio o fazia caçar as crianças desobedientes e comer-lhes o fígado para obter a sua cura. Por isso, ele sai durante as noites pelas ruas raptando crianças e colocando-as dentro de um saco que trazia nas costas. A lenda não tem origem definida, mas é contada na região com bastante frequência até hoje.

Foi baseado nesta lenda que o pernambucano Jonas Filho, natural de Recife escreveu o seu primeiro livro chamado O Paciente do Dr. Van Linden.  A obra foi dividida em dois volumes.

O primeiro volume é mais focado no diálogo do Dr Abel Van Linden, um renomado hepatologista, com seu estranho paciente antes de realizar-lhe um transplante de fígado, numa época que tal cirurgia ainda nunca havia sido feita.

A criatura conta a sua história e todos os acontecimentos à sua volta que o transformou nesta figura perturbada, o “Papa-Figo”. Passado na Inglaterra em 1935, dá a impressão que não há ligação com a lenda brasileira, mas aos poucos o leitor percebe onde a história pretende chegar.

O segundo volume, acontece 27 anos depois na cidade do Recife, onde o médico já não exercia mais a sua profissão de hepatologista, mas vive ainda na sombra de seu pertubador passado e aterrorizado pela volta do seu pior inimigo.

Ficha Técnica

Volume I

Autor: Jonas Filho

Editora: Frevo

Ano: 2012

Páginas: 270

Volume II

Autor: Jonas Filho

Editora: Frevo

Ano: 2012

Páginas: 230

06 – Quando o Saci Encontra os Mestres do Terror (Vários autores)

Quando o Saci encontra os mestres do terror teve como proposta resgatar alguns mitos do folclore brasileiro, dando um toque a mais de terror ou suspense, ou ainda de trazer para essas lendas uma narrativa ao estilo dos mestres do terror. 

Alguns mitos se repetiram dentro da seleção de contos da editora Estronho, mas segundo a organizadora Ana Cristina Rodrigues, essas histórias ganharam narrativas e ideias diferentes entre si. Onde não esteve presente o terror, pode-se ver uma narrativa bem ao estilo Edgar Allan Poe ou talvez de um H. P. Lovecraft.

Foram selecionados os autores: Chico Pascoal (Mr. Bierce e o duende dos Pampas), Cristiano Rosa (A estrela das águas), Cindy Dalfovo (Iara, meu amor), Dana Guedes (Um causo dos que não se contam na floresta de concreto), Eriwelton Alves Soares (Olhos tristes no cinza do asfalto), Florestano Boaventura (Tempat Bagi Orang Yg Terlantar), Lemos Milani (Os pesares da noite), Lucas Lourenço (Pacto hereditário), Natália Couto Azevedo (Lírios, na beira da cachoeira), Nikelen Witter (Embornal dos olhos), Rogério Silvério de Farias (O horror em chamas), Verônica Freitas (O homem sem mãos), Felipe Santos (Devoradora), Flávio de Souza (Noite sem lua) e Walter Tierno (Cobrança da pisadeira), além da organizadora dos contos Tânia Souza (Nem todo verão pertence ao sol).

Ficha Técnica

Autora: Ana Cristina Rodrigues (Organizadora)

Editora: Estronho

Ano: 2012

Páginas: 240

Já imaginaram?! Quem disse que Saci Pererê e companhia limitada não tinham mais o poder de assustar as pessoas. Estes seis livros provaram o contrário: que eles ainda tem sim, o poder de provocar calafrios.

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