Medicina dos Horrores

03 agosto 2019

Ok, deixe-me contar um segredinho: na minha infância, sempre sonhei ser médico. E olha que esse sonho durou bastante, pelo que eu me lembre, até... os meus 18 anos. Tanto é que cheguei a me inscrever para o vestibular de medicina, mas depois desisti. Sei lá, simplesmente desisti e, então, acabei encontrando o que eu amo até hoje: o jornalismo.
Talvez por essa “paixão adolescente”, após décadas, eu ainda me amarro em livros que abordem temas relacionados a história da medicina, principalmente no que diz respeito a sua evolução através dos tempos. Desse modo, quando vi o lançamento de “Medicina dos Horrores” da escritora e doutora em história da ciência, Lindsey FitzHarris, não titubeei nem um segundo e já reservei o meu exemplar que na época estava em pré-venda.
O livro é fantástico, pois a autora numa linguagem fluída e descomplicada faz com que os leitores tenham uma ampla noção de como era a prática da medicina no século XIX e a luta de um jovem cirurgião chamado Joseph Lister em adotar métodos antissépticos que evitassem as infecções pós-operatórias que matavam milhares de pacientes naquela era.
Hoje, a assepsia se tornou uma pratica comum e ao mesmo tempo obrigatória, mas é difícil acreditar que nem sempre foi assim. Exemplo disso é que até meados do século XIX ela não existia e assim, as cirurgias eram repletas de sangue, dor e podridão.
Cirurgião Robert Liston fazendo a amputação de uma perna em seu paciente. Tempo: 30 segundos!
Numa época pré-anestesia, os procedimentos eram realizados em velocidade máxima – os mais célebres cirurgiões da época amputavam uma perna em menos de trinta segundos -, de modo a amenizar o sofrimento do paciente. Sem luvas e sem o menor cuidado com a higiene básica, alheios à existência dos microrganismos, eles ainda ficavam perplexos com as infecções pós-operatórias e com as taxas de mortalidade implacavelmente elevadas.
O desconhecimento de que o ar continha microrganismos que causavam graves infecções em feridas abertas, levavam esses médicos a realizar publicamente suas operações. Por essa razão, o anfiteatro cirúrgico do University College Hospital de Londres recebia em média, 200 pessoas que se aglomeravam para assistir as cirurgias em uma espécie de arquibancada com grades semicirculares para que o público composto pelos estudantes de medicina, aprendizes, assistentes de cirurgiões e até mesmo espectadores curiosos pudessem acompanhar todo o procedimento.  Muitos deles arrastavam consigo para o recinto a sujeira e a fuligem do dia a dia da Londres vitoriana.
As cirurgias no século XIX eram realizadas em anfiteatros lotados de espectadores
As pessoas se amontoavam como sardinha em lata, e as que ocupavam as últimas fileiras se acotovelavam constantemente para conseguir um ângulo melhor, gritando “Abaixem a cabeça!” toda vez que sua visão ficava bloqueada.
Os médicos e cientistas acreditavam que as doenças contagiosas eram causadas pelo miasma, um odor ruim das ruas e dos rios que se dissipava pelo ar. Por isso, não se usava nenhum método antisséptico na sala de cirurgia.
Na década de 1800, médicos amputavam os dedos das mãos e pés com facas simples
Caixas de madeiras com areia ou serragem eram utilizadas para transportar o sangue das operações, e os cirurgiões e seus assistentes só lavavam as mãos após os procedimentos, assim como os instrumentos cirúrgicos. Os médicos realizavam a operação rapidamente para minimizar possíveis hemorragias. Os cirurgiões andavam com os jalecos manchados de sangue pelas ruas, como se fosse uma espécie de troféu.
Pois é galera, foi esse cenário que Lister tentou modificar. Já adianto que ele conseguiu, mas a duras penas. Ele teve que lutar muito antes de ter os seus métodos aceitos e dessa forma, ser reconhecido como uma verdadeira sumidade na história da medicina. Antes disso, ele foi desacreditado e até mesmo ridicularizado. 
Joseph Lister, o médico que revolucionou o apavorante e bizarro mundo das cirurgias do século XIX
Os cirurgiões daquele tempo, simplesmente não aceitavam que criaturas minúsculas e invisíveis presentes no ar, estavam matando seus pacientes. Levou décadas, além de uma nova geração de cirurgiões, para mudar o paradigma. A aplicação da teoria dos germes à prática médica certamente está entre um dos mais importantes avanços da medicina.
Lister foi o criador da cirurgia antisséptica. Na Escócia, ele investigou problemas relacionados às operações, como a inflamação, a cicatrização das feridas e o papel da coagulação. 
Por volta de 1865, o cientista francês Louis Pasteur desenvolveu a teoria da produção da doença infecciosa por germes, e coube a Lister a plena compreensão do significado e da importância do trabalho de Pasteur. Portanto, a antissepsia e o controle inicial da infecção têm nesses dois nomes a referência histórica que fez mudar os horizontes da cirurgia, fazendo dessa arte uma ciência mais segura no combate às enfermidades.
Escritora e doutora em história da ciência, Lindsey FitzHarris, autora do livro "Medicina dos Horrores"
“Medicina dos Horrores” não se resume apenas a uma biografia de Lister com detalhes curiosos sobre a sua vida. O livro é muito mais do que isso. A autora descreve como foi descoberto o primeiro anestésico, o que levou os médicos a realizarem cirurgias mais demoradas; antes esses procedimento ficavam restritos às amputações. Ela ainda relata casos de cirurgias complexas – que apesar da falta de assepsia – já eram realizadas naquele tempo, como tumores malignos no rosto e nas mamas. Os leitores ainda tem a oportunidade de conhecer os médicos famosos da década de 1800, como Robert Liston que foi considerado o cirurgião mais rápido do mundo. Ele ficou famoso pelo inusitado talento de amputar uma perna em menos de 30 segundos.
Mas – pelo menos no meu caso – o que me chamou mais a atenção foram os capítulos dedicados a Liston que mostraram como foi a sua luta para mudar o panorama caótico das cirurgias do século XIX, fazendo com que elas deixassem de ser realizadas nos teatros abarrotados de pessoas e passassem para as salas cirúrgicas dos hospitais com todos métodos antissépticos necessários.
Além disso, “Medicina dos Horrores” mostra também os desafios de Liston como cirurgião que tinha o hábito de enfrentar casos complicados que outros médicos sempre procuravam evitar.
Enfim, um livro incrível e que eu recomendo para todos os leitores do blog. Parabéns ainda para a editora Intrínseca que caprichou no layout da obra. A publicação em capa dura e com as bordas das páginas na cor preta, certamente, merece um lugar de destaque em sua estante.
Boa leitura!

2 comentários

  1. Ótima resenha! Esse livro parece proporcionar uma leitura bastante elucidativa a respeito da evolução da ciência médica!

    A propósito, parabéns pelo blog, do qual gostei muito. :)

    http://tudoquemecomove.blogspot.com/

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    Respostas
    1. Que bom que gostou, fiquei feliz.
      Quanto ao livro é muito bom, aliás, excelente.
      Volte sempre e abraços!

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