Uma Sombra Passou por Aqui

07 agosto 2020

Na minha opinião existem dois gêneros de ficção científica: raiz e poético. O primeiro é representado por uma miscelânea de naves espaciais, seres alienígenas, guerras interestelares, disputas por planetas, poderosas armas laser, etc. Já o segundo, procura inserir num futuro bem distante situações cotidianas vividas em nosso dia a dia, mas com pouca ou quase nenhuma pirotecnia espacial, excetuando algumas poucas naves e foguetes.
“Guerra do Velho” (John Scalzi), “Tropas Estelares” (Robert A. Heinlein) e “O Jogo do Exterminador” (Orson Scott Card) são exemplos latentes de ficção raiz. Quanto ao poético, considero Ray Bradbury o seu representante máximo; do tipo: “não tem prá mais ninguém”. O cara é fera.
Por isso, quando você ler qualquer enredo escrito por Bradbury não espere muita ação, mas histórias para refletir sobre vários problemas e situações que sempre afligiram os seres humanos ao longo de sua história. Algumas dessas situações, inclusive, bem contemporâneas, apesar do período em que foram escritas.
O próprio Bradbury dizia ser um “escritor de ideias”, não de ficção científica, como ficou conhecido após criar sucessos como Crônicas Marcianas (1950), O Homem Ilustrado (1951), ou o romance Farenheit 451 (1953). Seu método consistia em associar palavras a ponto de lhes dar uma história inteira, algo assemelhado ao da poesia. Por isso que ficou conhecido no meio literário como o “Poeta da Ficção Científica”.
Uma Sombra Passou por Aqui ou O Homem Ilustrado é o exemplo mais claro desse gênero dentro da ficção científica criado por Bradbury. As histórias, apesar dos discretos foguetes e avanços científicos, parte de situações cotidianas do nosso dia a dia e criam situações assustadoras e inquietantes. Várias delas, com certeza, já enfrentadas por alguns de nós.
São 18 contos que, embora explorem o tema do conflito entre a tecnologia e a natureza humana, não têm conexão entre si.
Cada história tem como ponto de partida uma das tatuagens que cobrem todo o corpo de um homem conhecido apenas pelo apelido de o "homem ilustrado". As tatuagens foram feitas por uma mulher do futuro, segundo ele —, que vagueia de cidade em cidade. Quando alguém fixa o olhar numa delas, as figuras se tornam animadas e ganham vida e, assim a história começa.
Os contos que mais despertaram o meu interesse foram os seguintes;
A Estepe Africana
No futuro, um casal percebe que um jogo virtual está prejudicando os seus filhos que passam a maior parte do tempo dentro de um quarto capaz de criar qualquer ambiente ilusório. As crianças adoram ficar numa estepe africana cercada de leões. Quando os pais decidem acabar com essa realidade virtual, as crianças não aceitam e partem para a vingança.
Caleidoscópio
Um grupo de astronautas é jogado no espaço após a fuselagem do seu foguete se romper. Enquanto caem no espaço, eles procuram refletir sobre a vida que levaram até agora, chegando a várias conclusões. Um conto bem poético.
O Outro Pé
Após serem muito humilhados e maltratados pelos brancos, a maioria dos negros acabam migrando para o planeta Marte onde formam uma grande colônia, bem desenvolvida. Certo dia, eles ficam sabendo que um foguete da terra tripulados por brancos irá aterrissar em Marte. Então, os negros preparam a sua vingança que há muito tempo estavam esperando. Conto que explora as consequências do racismo.
O Homem
Um grupo de viajantes espaciais da Terra chega a um planeta que um dia antes havia recebido a visita de Jesus Cristo. O comandante da nave tenta de todas as maneiras se encontrar com Jesus, não medindo as consequências de seus atos. A história é uma verdadeira prova da genialidade de Bradbury, capaz de transformar qualquer tema ou assunto numa história de ficção científica.
A Grande Chuva
No planeta Vênus recriado por Bradbury não para de chover. Uma chuva forte e intermitente cai no planeta há séculos. Por isso foi necessário a construção de vários prédios conhecidos por “Domos” para abrigar os astronautas que desembarcam no planeta para certas missões. Problema: a maioria desses domos foram destruídos por seres alienígenas. Dentro desse panorama, um grupo de astronautas acaba ficando perdido no planeta e é obrigado a enfrentar a terrível chuva. Agora, imagine o aguaceiro batendo direto na cabeça desses viajantes. Alguns acabam enlouquecendo. Será que os sobreviventes conseguirão chegar aos poucos Domos existentes?
O Foguetista
Uma criança de 14 anos narra como ele e a mãe sentem falta do seu pai, um piloto de foguete, que passa apenas poucos dias do ano ao lado família. O restante de seu tempo, ele passa dentro de um foguete fazendo viagens interplanetárias. O conto inspirou a criação da música “Rocket Man” do cantor Elton John.
Os Ígneos Balões
Mais um conto que explora o tema religião. Um grupo de padres missionários segue para o planeta Marte com a missão de catequizar os marcianos. Chegando por lá, a surpresa é grande, pois o que presenciam  não é nada do que esperavam.
A Raposa e a Floresta
A história se passa em 1938, no México, onde um casal fugitivo passa a ser perseguido por um investigador que quer a qualquer custo que a dupla retorne para o ano de 2155, de onde fugiram.
O Visitante
No futuro, uma grave doença ataca os terráqueos e ameaça dizimar o planeta. Por isso, todos as pessoas que apresentam sintomas suspeitos são exiliadas para o planeta marte onde são obrigadas a viver na solidão esperando a morte. Certo dia, eles recebem a visita de um rapaz – também com suspeita da doença – que tem o poder de produzir neles vários prazeres que tinham na Terra. O que era para ser um alívio para todos se transforma numa guerra, quando os enfermos não aceitam dividir o rapaz
Marionetes S.A.
Conto fantástico e com um final surpreendente. Um marido infeliz no casamento e com uma mulher do tipo “marcação cerrada” que não dá folga, decide deixa-la por uns tempos para visitar o Rio. Para isso, ele deixa em seu lugar um robô com as suas características. É claro que as coisas não saem como o planejado. Conto com pitadas de humor e que serve para refletir sobre a fidelidade no matrimônio.
Taí galera, essas foram as histórias que mais me agradaram em Uma Sombra Passou por Aqui, o que não significa que as outras sejam ruins. Pelo contrário, todos os contos são muito bons e merecem ser lidos.
Em tempo: o livro foi adaptado para o cinema em 1969, mas o filme não obteve o sucesso esperado e recebeu muitas críticas negativas.
Por isso, melhor ficar com o livro.
Valeu!

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