Realidades adaptadas

18 outubro 2022

Não tenho como negar que no começo foi muito difícil me conectar com o estilo narrativo de Philip K. Dick. Só fui... como posso dizer... acho que o termo correto é “plugar”. Isso mesmo, só pluguei a partir do início do segundo conto. Juro que estava para desistir da leitura logo de cara, ao ler a história que serviu de base para a adaptação cinematográfica de “O Vingador do Futuro” que se transformou num dos maiores sucessos de toda carreira do brucutu Arnold Schwarzenegger. Depois, a leitura saiu do “modo espera” e foi engrenando aos poucos; como aqueles carros que que fazem os seus donos suarem sangue para pegar no tranco, mas depois que pegam, andam sem nenhum problema, na ‘maciota’.

Por isso, já alerto os leitores dessa postagem que não estão acostumados com o estilo de K. Dick para que se preparem, pois poderão sentir a mesma sensação que eu tive. O conselho é para que não desistam, pois os contos apesar seguirem a chamada linha “Dickniana” são muito bons.

E como posso definir essa linha que apelidei por conta própria de “Dickniana”. Cara... olha é complicado, mas vou tentar expor o que eu senti ao ler as histórias de Dick; vamos lá. O início das narrativas é uma “bagunça só”. Jesus, o que é aquilo! São personagens mal aproveitados, pontas soltas no enredo, argumentos confusos, plots bobos e etc, mais etc. Tanto é verdade que ao começar a ler Realidades Adaptadas tive a impressão de que o autor estava chapado enquanto escrevia aqueles contos. E não é que eu estava certo! Depois que li o livro fiquei sabendo que as loucura das páginas de Dick eram, de fato, um reflexo da mente conturbada do escritor. Diagnosticado com doenças mentais e transtornos diversos como agorafobia e paranoia, Dick não procurava acalmar a mente. Ao contrário. Escreveu a maioria de suas obras sob o efeito de metanfetamina, uma droga potente e viciante que conduz ao aparecimento de comportamentos psicóticos, além de outros transtornos mentais como depressão. Além das drogas, o autor teve cinco casamentos difíceis o que o fez se afundar ainda mais na dependência das metanfetaminas. Resultado: internação em clinicas de reabilitação e algumas tentativas de suicídio.

Acredito que o futuro sempre sombrio existente em suas histórias foi o fruto desse período em que Dick estava loucaço. Suas narrativas tem uma aura bem deprê que serve de pano de fundo para enredos que misturam ficção científica e thriller policial sempre colocando em dúvida o que é e o que não é real.

Mas toda essa coisa louca e sem sentido que, quase sempre, rolam nos contos de Dick vão se esclarecendo aos poucos, ou seja, as pontas soltas iniciais vão se amarrando com o desenrolar da narrativa até à conclusão genial capaz de deixar os leitores, à princípio, decepcionados com a história, com aquele Ohhhhhhh!!! de surpresa na boca. Resultado: se no início, eles excomungavam a história, no final, eles passam a amá-la. Bem, acho que é isso. Não sei se consegui explicar a essência das histórias escritas pelo autor. Realidades Adaptadas deixa muito evidente esse ponto de vista.

O livro com pouco mais de 300 páginas traz sete contos conhecidos do autor que foram adaptados para o cinema, tornando-se filmes conhecidos, alguns deles grandes sucessos de bilheteria como “O Vingador do Futuro” e “Minority Report – A Nova Lei”.

Se você, infelizmente, é aquele tipo de leitor que traz pronta na boca a frase infame: “Como já assisti ao filme não vou perder tempo lendo o livro”, pode mudar esse conceito, pelo menos com Realidades Adaptadas, lançada pela editora Aleph. Os contos são infinitamente diferentes dos filmes, mas diferentes ao extremo. Na minha opinião, o único que se aproximou um pouco mais da produção cinematográfica foi “O Pagamento” que pintou nas telas em 2003 numa superprodução de John Woo com Ben Affleck e Uma Thurman nos papéis principais.

Confiram um pequeno resumo dos contos:

01 – Lembrando para você a preço de atacado

Adaptação para cinema: O Vingador do Futuro

Muito, mas absurdamente diferente do filme “O Vingador do Futuro” de 1990 com Arnold Schwarzenegger e mais diferente ainda do que o remake de 2012 com Colin Farrell.

Neste conto escrito em 1966, Douglas Quail é um escriturário que sonha em viajar para Marte, algo um tanto fora de suas condições financeiras. A solução é a Recordar S.A., empresa que presta serviços de implantes de memória, criando lembranças vívidas de eventos que não aconteceram de fato. Ao procurar esse atendimento, Quail tem a surpresa de que já existem memórias reprimidas em sua mente sobre uma estadia em Marte, o que gera uma série de problemas e questionamentos sobre o que é realmente fato ou invenção.

02 – Segunda Variedade

Adaptação para cinema: Screamers – Assassinos Cibernéticos

O filme “Screamers – Assassinos Cibernéticos” foi lançado em 1995 e dirigido pelo canadense Christian Duguay que cinco anos depois faria o excelente “A Cilada” com Wesley Snipes, que muitos reputam como o melhor filme tanto do diretor como do ator. Quanto a “Screamers – Assassinos Cibernéticos”, apesar de ter recebido elogios da crítica, fracassou nos cinemas. Uma pena, porque o filme é bom, apesar de ser muito diferente do conto no qual foi inspirado.

Mas vamos ao resumo da história escrita por Dick. Gostei muito dessa narrativa, apesar de ter descoberto o seu plot twist final ainda no meio o conto.

Em Segunda Variedade, esqueça os robôs bonzinhos de Isaac Asimov que seguem fielmente as leis da robótica. Aqui, quem domina o enredo são máquinas cruéis e sanguinárias. O homem utiliza estas máquinas para exterminar outros homens de forma eficiente. E a estratégia que estas máquinas adotam durante a história é covarde e cruel.

A história se passa em uma realidade distópica, em que dois blocos, um liderado pelos Estados unidos e outro pela Rússia, estão em uma guerra de consequências mundiais. A Rússia, por ter tomado a iniciativa, começa em vantagem, obrigando inclusive o governo e os civis americanos a refugiarem-se na lua. Quando tudo parece perdido para os Estados unidos, o país cria uma nova arma que muda o rumo do confronto: os tais robôs assassinos.

03 – Impostor

Adaptação para cinema: Impostor

Vou me abster de opinar sobre o filme lançado em 2001 já que não tive a oportunidade de assisti-lo, mas quanto ao conto, achei “da hora”, bom mesmo. Dick põe em cheque a chamada crise ou mesmo perda de identidade do personagem frente ao fato de ter certeza de suas próprias memórias, mas carregando a dúvida: “serei eu um robô?”.

Este conto foi escrito em 1953 e narra a saga do personagem Spence Olham, um cientista especialista em armas trabalhando para o governo terrestre que tenta deter uma invasão dos alienígenas de Alfa Centauro. Sua vida sofre uma reviravolta quando é acusado pela polícia secreta, liderada pelo Major Hathaway, de ser um impostor - um clone cibernético perfeito do verdadeiro Spencer Olham com uma bomba interna a ser usada para matar uma alta autoridade do governo. Spencer não acredita ser um clone e consegue fugir das instalações. Agora, ele tem que provar que não é um robô. Final surpresa.

04 – O Relatório Minoritário

Adaptação para cinema: Minority Report – A Nova Lei

O conto de Dick escrito em 1956 deu origem a um dos filmes mais elogiados do astro Tom Cruise. “Minority Report – A Nova Lei” passou nos cinemas em 2002 e fez muito sucesso. O roteirista Scott Frank, o mesmo de “O Nome do Jogo” e “Marley e Eu” usou poucos elementos do conto para o filme dirigido por Steven Spielberg. 

Na história escrita por Dick, Anderton (interpretado por Tom Cruise nas telonas) é um policial fundador da Pré-Crime, agência do governo que consegue, por meio de previsões de três precogs, antecipar futuros crimes e prender os “infratores”. No dia em que seu novo e ambicioso assistente chega ao departamento, porém, um relatório majoritário é expedido com o nome de Anderton, prevendo um assassinato. Em dúvida se a acusação foi forjada ou um erro do sistema, Anderton tem apenas uma certeza: sua salvação está no relatório minoritário.

Este foi o conto que menos gostei do livro. Sinceramente, não me empolgou. Etchaaa!! Bem complicadinho e além de tudo parado. Não empolgou mesmo. Nunca pensei que um dia faria essa afirmação, mas nesse caso vá lá: “prefiro o filme ao conto”. Putz, fiquei com peso de consciência pela afirmação (rs).

05 – O Pagamento

Adaptação para cinema: O Pagamento

Conto e filmaço ‘dez’. Bom mesmo. O filme só sairia depois de um hiato de 50 anos. Isso mesmo, Dick escreveu O Pagamento em 1953 e a sua história só iria parar nas telonas em 2003.

No conto, o personagem Jennings acaba de acordar. Dois anos atrás, ele fora contratado pela Construtora Rethrick como técnico e teve sua memória apagada para não revelar detalhes da operação. Tudo em troca de um bom pagamento, é claro. Ao chegar a Nova York, porém, é recompensado apenas com sete bugigangas, entre elas uma chave e uma metade de ficha de pôquer. Sentindo-se traído, Jennings só pensa em se vingar descobrindo a causa secreta pela qual trabalhou, enquanto a polícia o persegue pelo mesmo segredo. Como já escrevi no início desse post, o filme homônimo de 2003, dirigido por John Woo, teve Ben Affleck e Uma Thurman como protagonistas. Achei a química dos dois atores perfeita, contribuiu muito para o sucesso da produção.

06 – O Homem Dourado

Adaptação para cinema: O Vidente

Talvez, alguns cinéfilos não concordem comigo, mas “O Vidente” com Nicolas Cage, Julianne Moore e Jessica Biel pode ser considerado um dos melhores filmes de suspense e ação dos últimos tempos. Com certeza, devo estar sendo massacrado, nesse momento, por alguns críticos de cinema que leem essa postagem já que a grande maioria considerara a produção de Cage uma bomba. Só posso dizer: não penso assim. No meu caso, adorei “O Vidente”. Tanto é que já assisti várias vezes.

O detalhe - para não fugir da regra, né? (rs) é que o filme é completamente distinto do conto de Dick. Vou ser mais exato: o diretor neozelandês Lee Tamahori (“007 – Um Novo Dia Para Morrer”) só aproveitou o nome do personagem – Chirs Johnson, que no filme é conhecido por John Cadilac – e a sua capacidade de prever o futuro. Quanto ao resto, esqueça: conto e filme são muuuuito, mas muuuuito diferentes.

Na narrativa publicada em 1954, num futuro próximo, a humanidade teme a gênese de uma raça superior. Com mutantes surgindo em todos os cantos do planeta, as nações criam um organismo internacional, a ACD, dedicada a eliminar qualquer indivíduo que apresente mudanças potencialmente perigosas. Todos são varridos da face da Terra… ou quase. No interior dos EUA, um garoto de cor dourada e poderes psíquicos é mantido escondido pela família por 18 anos.

Já no filme, Chris Johnson (Nicolas Cage) ganha a vida com um medíocre número de mágica em Las Vegas, mas sua habilidade de prever alguns minutos do futuro é autêntica. Callie Ferris (Julianne Moore), uma agente do governo, sabe disso e o convoca para ajudá-la a impedir que um grupo terrorista detone uma bomba nuclear em pleno coração de Los Angeles.

07 – Equipe de Ajuste

Adaptação para cinema: Os Agentes do Destino

À exemplo do que aconteceu com “Impostor” também não assisti ao filme “Os Agentes do Destino” com Matt Damon e Emily Blunt exibido nos cinemas em 2011. Por isso, também vou evitar comenta-lo, mas pelo o que eu já li e ouvi sobre o assunto: ambos são infinitamente diferentes.

Na história publicada em 1954, tudo parecia um dia como qualquer outro para Ed Spencer: acordar, beber o café que a esposa fez, tomar um banho e sair. Por trás da monotonia da rotina, porém, uma equipe trabalha em sintonia perfeita para garantir que o futuro saia exatamente conforme o planejado. Uma única falha pode modificar a vida de Ed.

Não gostei do conto: estranho e tão surreal que desanima.

Taí galera. No balanço final, gostei de Realidades Adaptadas. Os dois únicos contos que não me agradaramu foram: O Relatório Minoritário e Equipe de Ajuste.

Recomendo a leitura, mas antes, friso o recado que dei ao começar essa postagem: se você não conhece o estilo narrativo de Phillip K. Dick, não desista logo no início da leitura; espere um pouco porque a narrativa irá te ganhando aos poucos.

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