Acho que ao ler “Mary Reilly – A verdadeira história de o
médico e o monstro” fui com muita sede ao pote. Esperava muito da obra de
Valerie Martin, mas... o pote quebrou. A introdução do livro até que prometia e
prometia bastante com a autora contando resumidamente a infância sofrida de
Mary que era constantemente violentada pelo pai. Durante as suas crises de mau
humor, ele tinha o hábito de trancá-la num pequeno armário, completamente
escuro, para logo em seguida soltar um rato faminto.
Martin explica como a crueldade do pai serviu para tornar a
futura criada do Dr. Jekyll numa pessoa observadora, atenta e perspicaz, com
capacidade para entender o frágil equilíbrio humano. Qualidades que deram à ela
condições de entender o sofrimento de seu patrão que divide o corpo e a
consciência com um perigoso delinqüente, no caso, o Sr. Hyde.
Mas, em minha opinião, a autora não soube aproveitar esse
vantajoso pulo do gato para incrementar a sua narrativa. Excetuando a
introdução sobre a infância de Mary e as poucas páginas iniciais, onde o Dr.
Jekyll consegue convencê-la a contar-lhe o significado das cicatrizes em suas
mãos e também no pescoço – obrigando-a realizar uma ‘viagem’ nada agradável de
volta ao seu passado – a história é muito cansativa.
A narrativa empaca. Sei lá, não anda. A história é contada pela
personagem na forma de um diário, onde ela expõe todas as suas experiências vividas
no período em que foi uma das criadas da mansão de Jekyll. Mary dá detalhes do
jardim da mansão e sobre tudo o que é plantado por lá; opina sobre as manias e
personalidades distintas dos outros criados; explica ‘tim-tim por tim’ como faz
a limpeza dos móveis, escadarias e piso da casa do patrão e etc e etc. Nos momentos em que há os diálogos
entre Mary e Jekyll a trama não se desenvolve, fica cansativa.
O Sr. Hyde descrito pela autora também não empolga e o pior:
não assusta e tampouco causa repulsa no leitor. O romance “enrustido” entre
Mary e Jekyll é outro ponto negativo do enredo, já que ambos parecem dois
adolescentes tímidos com vergonha de expressar o seus sentimentos e portanto,
decidem fazer isso, por meio de metáforas e olhares roubados. Este ‘chove não
molha’ se arrasta por boa parte da narrativa.
Acredito que “Mary Reilly – A verdadeira história de o
médico e o monstro” é um dos poucos casos onde a adaptação cinematográfica
supera o livro. O filme “O Segredo de Mary Reilly” lançado em 1996 e dirigido
por Stephen Frears é muito melhor. O diretor optou por um Sr. Hyde mais
sinistro e que realmente assusta, mas por outro lado também atrai pela sua
coragem e ousadia. Essa ambigüidade do personagem é o tempero da trama que
faltou ao livro. Outra sacada de Frears foi envolver Mary num perigoso jogo de
sedução, ou seja, ela se sente ao mesmo tempo atraída pela elegância e bons
modos de Jekyll e pela coragem de Hyde.
Mas o maior trunfo do filme é o clima de suspense em sua
terceira parte que chega a ser angustiante. Algo que também falta ao livro. Uma
pena.
A obra de Valerie Martin desloca o foco narrativo de “O
Médico e O Monstro”, de Robert Louis Stevenson, para um personagem
circunstancial, Mary Reilly, fazendo uma releitura do famoso romance gótico,
considerado até hoje, a mais completa metáfora sobre a dualidade primitiva de
todo o ser humano, ou a que melhor expressa o eterno embate entre consciente e
inconsciente.
Se você ainda não leu nem um, nem outro, opte pela obra de
Stevenson. “O Médico e o Monstro” continua insuperável.
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